Nas últimas décadas, a importância da religiosidade e espiritualidade (R/E) na saúde mental tem sido amplamente reconhecida. Inúmeras pesquisas têm demonstrado os impactos positivos que essas dimensões podem ter sobre o bem-estar e a recuperação de pacientes com transtornos mentais. Este artigo explora a evolução histórica dessa relação, as definições essenciais, os mecanismos de ação, e como a R/E pode ser integrada de maneira ética e eficaz na prática clínica psiquiátrica. O Brasil possui importante relevância científica nessa temática, com diversos pesquisadores renomados e profícuos; destaca-se a produção do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde – NUPES – da Universidade Federal de Juiz de Fora. A própria Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) possui um departamento específico para estudos relacionados ao tema (Comissão de Estudos e Pesquisa em Espiritualidade e Saúde Mental).
Evolução Histórica da Relação entre R/E e Psiquiatria
Historicamente, a relação entre religiosidade, espiritualidade e ciência, especialmente a psiquiatria, foi marcada por um suposto conflito. Influenciados por pensadores como Freud e Marx, muitos acreditavam que a R/E era um vestígio de irracionalidade que perderia relevância com o avanço da ciência. No entanto, estudos mais rigorosos nas últimas décadas têm mostrado que essa visão simplista é inadequada. Hoje, reconhece-se que a relação entre R/E e saúde mental é complexa e frequentemente positiva. Por exemplo, durante a Idade Média, a Igreja Católica foi pioneira na criação de instituições para o cuidado de doentes mentais.
Definindo Religiosidade e Espiritualidade
Não existem definições únicas para religião e espiritualidade, mas é crucial entender suas diferenças e interseções. A religião, ou religio, vem do latim e significa união ou conexão entre o homem e Deus. Espiritualidade, por outro lado, refere-se à relação com um aspecto transcendente da realidade que é considerado sagrado. Embora frequentemente ligadas, a espiritualidade pode ser vivenciada independentemente de uma afiliação religiosa formal.
Epidemiologia e Impacto na Saúde
Estudos internacionais mostram que a maioria da população mundial possui alguma forma de R/E. No Brasil, a religiosidade é particularmente importante, com 83,8% da população considerando-a crucial em suas vidas. No entanto, muitos pacientes relatam que raramente são questionados sobre suas crenças religiosas durante atendimentos de saúde, apesar de desejarem essa abordagem. A diferença de níveis de R/E entre profissionais de saúde mental e pacientes pode explicar essa lacuna, uma vez que os profissionais podem ter menos envolvimento religioso que a população em geral.
Mecanismos de Ação da R/E na Saúde Mental
Os mecanismos pelos quais a R/E influencia a saúde mental são variados e podem ser divididos em quatro categorias principais:
- Individuais: A presença de um sentido ou propósito existencial, bem como o desenvolvimento de virtudes como resiliência, compaixão e esperança, são fatores com efeitos protetores significativos para a saúde mental. Estratégias de coping religioso-espiritual (CRE) também são cruciais, oferecendo métodos de enfrentamento que podem ser adaptativos ou prejudiciais.
- Comportamentais: A R/E pode reduzir a exposição a comportamentos de risco, como o uso de álcool e drogas, e promover hábitos saudáveis, como a meditação e a oração. Estudos indicam que a participação regular em encontros religiosos fortalece aspectos positivos individuais e comunitários.
- Sociais: A participação em comunidades religiosas oferece suporte social, sentimento de pertencimento e amparo, fatores que têm efeitos potencialmente protetores sobre a saúde mental.
- Biológicos: Diferentes marcadores biológicos, como padrões de conectividade neural e predisposições genéticas, têm sido estudados como possíveis mecanismos pelos quais a R/E pode impactar a saúde.
Impacto da R/E em Transtornos Mentais Específicos
A R/E tem mostrado efeitos protetores para diversos transtornos mentais:
- Depressão: Pacientes com maior religiosidade apresentam menor incidência de depressão, melhor resposta ao tratamento e maior remissão de sintomas.
- Suicídio: Estudos indicam que a religiosidade tem um efeito protetor significativo contra o risco de suicídio.
- Transtorno Bipolar: A religiosidade é importante para a adesão ao tratamento e recuperação plena dos pacientes.
- Transtornos por Uso de Substâncias: A R/E é um fator protetor contra o uso de substâncias, sendo frequentemente incluída em programas terapêuticos.
- Transtornos de Ansiedade: A R/E pode ter efeitos positivos na remissão de sintomas e melhor saúde mental.
- Esquizofrenia: A R/E pode apoiar a recuperação e integração social de pacientes com esquizofrenia em remissão.
Integrando a R/E na Prática Clínica
A integração da R/E na prática clínica psiquiátrica deve ser realizada de forma ética, respeitando as crenças dos pacientes e evitando o proselitismo. A coleta da história espiritual é uma estratégia para compreender os aspectos R/E do paciente, auxiliando na formulação do caso e no planejamento de intervenções.
Considerações Finais
A integração da religiosidade e espiritualidade na prática psiquiátrica oferece uma abordagem centrada no paciente, promovendo uma melhor compreensão de suas crenças e práticas e potencialmente melhorando a adesão ao tratamento e o bem-estar geral, sempre utilizando melhores evidências disponíveis para oferecer um cuidado integrado e humanizado.
Materiais Complementares:
Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde – NUPES – da Universidade Federal de Juiz de Fora
Vídeos da Associação Brasileira de Psiquiatria:
ABP TV – A importância da espiritualidade para a saúde mental
ABP TV – Espiritualidade aplicada à prática clínica a saúde mental
ABP TV – Mediunidade ou doença mental?